quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Peñarol: glória e decadência


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Um dos grandes acontecimentos da indústria cultural moderna foi o surgimento do cinema falado, lá por volta do fim dos anos 20. A assistência, é claro, adorou saber que poderia ouvir a voz dos seus ídolos em vez do monótono pianinho que acompanhava as sessões. O sucesso foi imediato, mas imediata foi também a deposição dos grandes ídolos do antigo cinema mudo, como Douglas Fairbanks, Mary Pickford e Lilian Gish. Todas as técnicas de encenação, todo o gestual, todo o tempo da narrativa do cinema mudo estavam irremediavelmente obsoletas para o novo formato de filmagem. Quem era grande no cinema mudo teve de mudar para continuar grande no novo cinema.

Na última quinta-feira, 28, o Peñarol entrou em campo para jogar contra o Independiente de Medellin sem patrocínio na camisa. Poucos clubes hoje fazem isso. Que eu lembre, só o Barcelona, pleno do velho espírito irredentista catalão, pode se dar ao luxo de não transformar sua camisa em uma página de classificados, tanto maior quanto menor é a expressão do time. O que antes era uma honrada obrigação de toda equipe – impedir a violação do manto sagrado – tornou-se um luxo acessível apenas a um dos clubes mais ricos do mundo. Clube que entra em campo sem patrocínio e sem dinheiro para segurar o tirão é um anacronismo ambulante e destinado ao fracasso. É o que todos sabem e esperam.

Pois anacronismo ambulante talvez seja a melhor expressão para qualificar o Peñarol de Montevidéo, pentacampeão da América, tricampeão do mundo, dezenas de vezes campeão uruguaio, dono de uma lista de ex-jogadores capaz de fazer inveja a qualquer clube europeu, neste milênio que acabou de iniciar. Quando os onze homens vestidos de jalde-negro entraram no gramado na dia 28 parecia que estávamos assistindo ao retorno daqueles velhos atores do cinema mudo em filmes de segunda categoria, desesperados por retomar a outrora gloriosa carreira. Tudo lembrava a passado: a camiseta limpa de patrocínios, os velhos nomes (um Dario Rodriguez, um Antonio Pacheco, um Pablo Cavallero, um De Los Santos, todos ex-titulares de seleção e ex-titulares de grandes da Europa contratados às pressas para a Libertadores),a postura altiva, o velho four four two aprendido daqueles ingleses donos de frigoríficos às margens do Rio da Prata – antigo e fascinante, como um filme mudo de um Eisenstein, um Fritz Lang, um D.W. Griffith, um Charles Chaplin costumam ser. Indiscutivelmente datado, como eles também costumam ser.

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Comemoração pelo título da Libertadores de 1966

Alguns poderão argumentar que o Peñarol só é datado porque vem, de certa forma, de um país “datado”. A ascensão e queda do futebol rioplatense é a ascensão e queda do Rio da Prata, e as lembranças de seus dias gloriosos é a perfeita encenação da máxima dantesca de que nada é mais triste do que relembrar das glórias passadas durante a decadência. Grandes nomes do passado – o Racing, o Estudiantes, o Independiente, o Nacional de Montevidéu e o próprio Peñarol – já não assustam ninguém e, a seu favor, os comentaristas brasileiros só lembram que a tradicional garra platina pode trazer alguma surpresa. Geralmente não traz. No esporte que é caixinha de surpresas o imponderável parece ter sido banido dos jogos dos tims argentinos e uruguaios. Sobretudo dos uruguaios. E mesmo assim o Peñarol entrou em campo no dia 28 de janeiro, na última quinta-feira, sem patrocínio, com os velhos jogadores, o velho esquema e a velha altivez para enfrentar o Independiente de Medellin.

O jogo valia pela pré-Libertadores. Em outros tempos, já seria um ultraje chamar o grande Peñarol para disputar um torneio classificatório para uma competição que ele já venceu cinco vezes e participou outras dezenas, incluindo uma decisão perdida para um ensandecido Grêmio que pôs em jogo o pescoço e as canelas naquela final inesquecível de 1983 e, ao fim do jogo, mal podia acreditar que estava vencendo a maior equipe da face da terra. Naquela época – e principalmente nas anteriores, nos anos 70, 60, 50 e até 40 – o Peñarol ia à Europa enfrentar o Real Madrid, enfiava goleadas memoráveis e, quando os europeus cercavam seus maiores craques, nem respondia aos milhões. Os uruguaios podiam ganhar menos do que os europeus mas nada podia comprar o prazer de envergar a 9 que havia sido de Alberto Spencer ou a 5 de Obdulio Varela. Um poster antigo do Peñarol campeão da Libertadores em 1959 resumia tudo isso na seguinte frase: “La gloria se llama Peñarol”. Um recado para os adversários como o Indepedendiente de Medellin, prestes a enfrentar nada menos do que a glória himself naquela noite agradável no alto da cordilheira dos Andes, como costumam ser todas as noites de verão naquelas paragens.

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O centroavante Fernando “El Potro” Morena, símbolo de um Peñarol vencedor

O mais dolorido de tudo o que aconteceu talvez não tenha sido a brutal ineficiência técnica do Peñarol. O mais dolorido talvez não tenha sido o fato de que os antigos craques não jogam mais nada. O mais dolorido com certeza não foi o acachapante 4 a 0 aplicado pelo pouco conhecido clube colombiano, que nunca chegou sequer a uma final de Libertadores e dificilmente um dia chegará. O mais dolorido para o orgulhoso torcedor carbonero foi a complacência dos jogadores ao tomar um gol atrás do outro, fuzilados pelos rápidos contra-ataques de jogadores colombianos que nunca aprenderam a respeitar o velho guerreiro montevideano porque nunca o viram ganhar nada. A insolência do Independiente ganharia uma resposta rápida e violenta em outros tempos. Nesta terça-feira, em Montevidéu, recebeu apenas a cabeça baixa e a resignação melancólica de quem sabe que seu momento de sair de cena chegou. Há anos o velho Peñarol já não disputava uma Libertadores e neste ano, quando ousou postular um lugarzinho no torneio, nem que fosse apenas de honra, recebeu o recado de que o topo do futebol moderno já não é para ele e sua camisa sem patrocínios, seus jogadores que voltam da Europa por puro amor à camisa e seu clube movido apenas pela paixão enlouquecida de sua hinchada. O Peñarol eliminado de hoje é o símbolo deste futebol que está indiscutivelmente morto e, como os filmes mudos de Eisenstein e Lang, como os beijos de Pickford e Fairbanks, só voltará aos nossos corações e mentes daqui para a frente como a recordação respeitosa de algo – algo grandioso e belo – que se foi para sempre.

Escrito por Celso Augusto Uequed Pitol


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