quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A imigração sem poesia

Para começar este artigo, convido o leitor a meditar brevemente sobre este poema:


E os trens que vêm de Bauru
Trazem cheia a segunda classe,
Com catingas de porão de navio,
Com choros de crianças embrulhadas em grossas lãs
européias,
Com caras rubras queimadas de sóis estrangeiros,
Famílias salubres e miseráveis
Que o Brasil chamava, miragem de ultramar.

Nesse amontôo de povo mal dormido
— Cabeças com lenços de cores, boinas de veludo negro —,
Nesses corpos fétidos que os beliches balançaram
Na travessia do vapor inglês,
Há uma poesia profunda,
Há uma poesia violenta,
Poesia das plebes agrícolas da Europa,
Poesia de raças antigas e obstinadas
Que qualquer coisa para este lado do Atlântico atrai;
Poesia da sorte desconhecida sobre o mar,
Poesia do porto de Santos,
Poesia da São Paulo Railway Company,
Poesia da Capital entrevista na bruma,
Poesia da imigração.


Este poema de Ribeiro Couto foi publicado em 1933. O autor é paulista e a imagem que o inspirou é a das estradas de ferro do Interior paulista e seus trens apinhados de gente “das plebes agrícolas da Europa” atraídos para um Brasil verde, pujante e vazio, imagem clássica da América dos sonhos dos europeus pobres.O rico solo da terra paulista foi uma mãe grata para milhões, a maioria deles italianos, cujo patois ítalo-paulista, característico até hoje de boa parte daquele Estado, batizou a terra que lhe matou a fome de “terra rossa” – terra vermelha em italiano, “terra roxa” na corruptela brasileira que passou à história. O trem de Ribeiro Couto passa pela “terra roxa”, circundada por serras cobertas pela Mata Atlântica e pelas florestas de Araucárias, mas poderia perfeitamente falar do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo, e, talvez do Mato Grosso e do Amazonas. Poderia falar do imenso Planalto Brasileiro – as “Brazilian Highlands”, dos mapas ingleses – que se estendem do Norte do Rio Grande do Sul ao Sul da Bahia, dos vales riograndenses e catarinenses, dos centros antigos de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Manaus e Belém do Pará. Poderia falar de quase todo o país.

Um país que viu sua população quintuplicar em menos de setenta anos, passando de menos de 10 milhões de pessoas para mais de 44 milhões entre entre 1870 e 1945, época em que esta poesia da imigração foi entoada. Ao povo brasileiro, fruto da miscigenação do colonizador português, dos índios que restaram e dos escravos africanos, juntou-se esta massa gigantesca de gente de todos os cantos do mundo, do Japão à Alemanha, de Portugal à Rússia, do Oriente Médio à Grã-Bretanha, que coloriu o já coloridíssimo panorama étnico brasílico. Este brasileiro que os recebeu estranhou seus hábitos, suas línguas “do demo” e, em alguns casos, até sua religião. Acabou por aceitá-los e misturar-se a eles, ou deixar-se perder no meio deles. Deixou também que ocupassem as terras virgens do Brasil, a fim de que buscassem em solo brasileiro o pão que suas pátrias infelizes não lhes davam. Deixou ainda que construíssem bairros e cidades inteiras à imagem e semelhança das suas terras natais para que não fossem atormentados pelo sentimento doloroso que ele, brasileiro, tão bem conhecia – e que, dizem, só ele conhecia – , chamado saudade. Deixou também que abrissem mercearias, bares, padarias, pizzarias, cervejarias onde poderiam vender livremente a comida que sempre faltou e passou a lhes sobrar – e também passou este brasileiro a beber cerveja e vinho, a comer pizza, sushis, salsichões, kibes e pastéis, a jogar futebol, a usar bonés, a falar “tchau”, “caramba”, “estrudel”, “chimia”, “caricatura”, “catzo” e tantas outras expressões alienígenas. Por fim, para completar a receptividade, o brasileiro deixou que seu rosto, seu nome e seus próprios hábitos se alterassem – passou a se chamar Schmidt, Rossi, Hidalgo, Nakamura, Scott, Mansur e outros que ele nem sequer aprendeu a pronunciar direito. Seu rosto virou, como no poema, uma cara rubra queimada de sol, mas não estrangeiro, sim brasileiro – o sol brasileiro destinado a iluminar e a queimar o rosto de todas as raças.

Diante disto tudo, diante deste poema com o qual o brasileiro recebeu o mundo inteiro, uma notícia como a da brasileira que teria sido agredida na Suíça, ou casos semelhantes não deve gerar ódio ou raiva e muito menos acordar uma xenofobia adormecida, quase morta, no coração de nosso povo, oriundo em grande parte justamente destas “raças antigas e obstinadas” que hoje não nos deixam sequer visitar a terra de onde partiram para sentirmos um pouco o ar que nossos miseráveis e famintos avós respiraram, comermos a escassa comida que lhes estava disponível, bebermos o pouco vinho que jazia no fundo de suas garrafas, caminhar, enfim, pelas estradas que seus pés – e não seus sapatos – cansadamente palmilharam. Não devemos nos sentir injustiçados quando os italianos, os mesmos que, por calcarem as mãos de tanto trabalharem nas lavouras, nas fábricas e nas cantinas, ganharam o apelido de “carcamanos”, nos expulsam de sua pátria com os bons gritos que nos acostumaram a conhecer. Nem devemos gritar aos céus pelo olhar frio e arrogante dos alemães, os mesmos que encontraram nos nosso verdejante interior a paz que sua pátria, presa de intermináveis conflitos internos e externos, de raça e de idéias, só logrou encontrar há menos de vinte anos; e muito menos devemos achar minimamente estranho quando ninguém menos que os portugueses, expulsos de sua pátria não pela guerra mas sim pela dura e simples fome, fome da comida que seu solo pedregoso e pobre não lhes dava, fome de liberdade que seu país preso de ditaduras lhe negava, fome, enfim, de dignidade, de humanidade mesma – quando eles, que são 700 mil em nosso país, chamam os 50 mil brasileiros que hoje estão em Portugal de ladrões e as 50 mil brasileiras de prostitutas. As portas que se fecham diante de nós, portas de ferro, protegidas por pontudas lanças, impedem a velha Europa de receber esses indesejáveis vagabundos que o mundo – o Terceiro Mundo – repeliu, não nos devem provocar dentes cerrados, órbitas saltadas, dores de cabeça ou reações mal pensadas, como a do nosso próprio presidente.A única coisa que devemos fazer, com a certeza e a decisão dos que, como o apóstolo pregou, abandonam uma vida para entrar em outra, é crescer. Crescer duramente, como os adolescentes divertidos e alegres que são obrigados a se tornarem adultos taciturnos e tristes. Crescer decididamente, como os jovens sonhadores que abandonam os sonhos de juventude para adquirirem o pragmatismo dos “vencedores”. Crescer em tudo, da cabeça aos pés, de coração e alma, de dentro para fora e de fora para dentro. Em cada praça deste gigantesco país devíamos pendurar letreiros coloridos com os dizeres “Urge que cresçamos”, mesmo que isso doa. Porque, caros compatriotas, é importante ficar claro, e muito claro, que um povo que consagra as nobres palavras da poesia a um bando de estrangeiros famintos é, sem a menor dúvida, nada menos do que um povo tristemente infantil.

Escrito por Celso Augusto Uequed Pitol

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