domingo, 9 de novembro de 2008

R.E.M: os EUA que aprendemos a gostar

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Final de tarde às margens do Mississipi

Quando Michael Stipe fez questão de saudar a eleição de Barack Obama como um acontecimento único na história dos EUA falava com muito mais propriedade e conhecimento de causa do que se o Offspring, os Strokes ou o Bruce Springsteen. Não porque ele é socialmente mais engajado do que eles, ou mais consciente, ou mais bonzinho. É até provável que Springsteen tenha uma imagem de salvador da pátria preocupado como a classe trabalhadora – o apelido “The Boss” não é de graça – muito mais consolidada do que Stipe e seus companheiros do R.E.M., até porque passou a vida investindo nela. Mas com absoluta certeza, quando Stipe fala que a chegada de um negro à presidência dos EUA é um acontecimento histórico o faz com a convicção de quem sabe do que está falando. De quem sente isso no fundo do coração. De quem, como bom filho do Sul dos EUA, sabe o que é ser um negro por lá e em que posição eles estão perante os brancos.

Quando o R.E.M nasceu, em 1980, a segregação racial estava presente na memória de qualquer sulista adulto. Antes de 1964, quando foi aprovado o Ato dos Direitos Civis, qualquer cidade da Geórgia ou do Mississipi (ou do Alabama, ou da Lousiana, ou da Carolina do Sul) tinha seus bares e ônibus para brancos e para negros, e não é preciso dizer qual dos dois era o mais pobre, mais sujo e mais decadente. A Klu Klux Klan era uma realidade bem próxima e capaz de interferir diretamente até mesmo na política da região. Ao mesmo tempo, era próxima a presença, ora lado a lado, ora mestiçada, das duas etnias, característica principal da cultura do Sul dos EUA e, especialmente, da Geórgia onde surgiu o R.E.M. Qualquer assunto que circunde questões como raça e cor são especialmente relevantes para um sulista. Quando um presidente negro é eleito, portanto, trata-se de uma situação de mudança essencial de paradigmas. Uma verdadeira revolução. Uma nova esperança.

E não foi por acaso que o show do R.E.M no Chile terminou com “I Believe” (”Eu acredito”). Michael Stipe, Mike Mills e Peter Buck parecem estar firmemente crentes de que algo no seu país está prestes a mudar de verdade. Que Obama é o marco de um novo tempo, não só de relações raciais internas, mas da relação conturbada dos EUA com o resto do mundo. Um presidente negro, sorridente, com ar de ex-jogador de basquete e com sobrenome não-inglês é muito mais agradável aos olhos e ouvidos do Terceiro Mundo do que um brancarrão sisudo que parece sequer saber o nome da capital do nosso país. Um presidente destes fala não só aos negros de todo o mundo, mas aos não-americanos do mundo – até porque ele próprio tem muito pouco a ver com a imagem que foi comumente associada aos seus compatriotas. George W. Bush vem do mesmo Sul de Michael Stipe e representa tudo o que ele e a banda não gostam. Obama não é do Sul, mas sua fala projeta-se fundo no coração de um sulista. É por isso tudo que o R.E.M está tão entusiasmado com o que está acontecendo.

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A banda que saúda Obama nasceu em Athens, na africaníssima Geórgia. Sua música inclassificável – descrita ora como rock alternativo, ora como pós-punk, ora como art-rock – está profundamente inpregnada das tradições folk de sua região natal, sem, no entanto, definir-se abertamente como um grupo regional como o Lynyrd Skynyrd. O guitarrista Peter Buck não tem o menor receio de trocar sua guitarra pelo banjo, enquanto o baixista Mike Mills larga o baixo e senta-ao piano e o vocalista Michael Stipe volta e meia se arrisca na gaita de boca, como fez no show em Porto Alegre. Ao mesmo tempo, a postura de palco do R.E.M. é claramente rocker: Michael Stipe pula, grita e gesticula o máximo que pode, ao contrário dos estáticos rednecks* barbudos. O R.E.M está pronto para os grandes espetáculos nos grandes centros longes das plantações de algodão, dos rednecks, dos niggas e daquele sotaque característico (que, aliás,nenhum dos membros da banda tem) , mas seus pés são bem fincados no Deep Old South de onde vieram.

Querer fazer parte da tradição dos EUA meridional não é pouco. Se há uma região que representa o verdadeiro pulmão cultural do Grande Irmão do Norte é esta. De lá vieram Johnny Cash e Elvis Presley, John Lee Hooker e B.B. King, Mark Twain e T.S. Eliot, William Faulkner e Tennessee Williams. De lá veio a inspiração para o judeu nortista chamado Robert Zimmermann converter-se no cantor folk Bob Dylan e para o inglês branquelo Eric Clapton transformar-se num dos maiores nomes do blues. Lá, no Mississipi, o filho de imigrantes alemães Charles Schulz pôs seus personagens Snoopy e Charlie Brown para viver e lá, na Geórgia de Michael Stipe, foi filmado E o Vento Levou, que levou para todos os cantos do mundo a mitologia do Sul, suas paisagens e seus tipos mais comuns. Estes tipos – o negro oprimido, a donzela, o pregador cristão, o cavaleiro-peregrino, o cantor-menestrel – serviram de base para que escritores como Tennesse Williams, Truman Capote, Flanery O´Conner e, principalmente, William Faulkner criassem uma nova e rica tendência da literatura americana, o “Southern Gothic”, onde estas antigas figuras são colocadas num fundo sombrio e grotesco, típico do romance gótico do Norte da Europa, mas com negros, casas de madeira, pais de santo e pântanos no lugar de servos, castelos, magos e florestas de pinheiros. Como no gótico europeu, as histórias são cheias de maldições, encontros aterradores, segredos guardados a sete chaves que subitamente vêm à tona e toda a sorte de situações estranhas perfeitamente amoldadas ao pesadíssimo ar úmido da beira do Mississipi. Não se trata, portanto, de louvar cegamente a tradição sulista e tentar fazer o passado reviver, e sim de aproveitá-lo como material para novos contornos. O “Southern Gothic” tem ramificações nas artes plásticas e no cinema; o R.E.M é o seu representante na música.

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Nada representa melhor o Southern Gothic e as intenções do R.E.M como artistas do que a capa do seu primeiro disco, Murmur. Um pântano como há milhões na Geórgia coberto por um musgo branco que parece dar-lhe vida, que parece fazer-lhe sussurrar algo em nossos ouvidos – murmúrios. Já seu primeiro single indicava a tendência ao pôr nada menos do um gárgula da catedral de Notre Dame, símbolo máximo do gótico na arquitetura, mas é em Murmur que esse Sul sombrio e pesado aparece, sem citação expressa (como, aliás, é o costumeiro no caso do R.E.M), mas sim ao

. Sem levantarem a bandeira dos Confederados nem clamarem contra os ianques do Norte (já que, quando xingamos os ianques, não é deles, dos sulistas, que falamos), Michael Stipe traz desde então, um pouco deste Sul profundo, que é, ao fim e ao cabo, a América profunda, o coração onde a alma americana bate mais forte e se faz ouvir ao resto do mundo, muito mais do que Nova York, Los Angeles ou Miami.

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A postura gentil de Mike Mills, de caneta na mão, educado e paciente com um grupo de fãs após o show de Porto Alegre, expressando-se nas duas ou três palavras que aprendeu do português, é a personificação da clássica figura do “Southern gentleman”, o melhor embaixador daquilo que é, para todos os que de fato amam a verdadeira cultura americana (e não os simplismos que nos enchem as rádios e fomentam preconceitos por parte dos nossos high brows), a imagem positiva e inspiradores dos Estados Unidos dos artistas que encheram os nossos olhos no cinema, que nos acompanharam em tardes de atenta leitura ou ressoaram fundo em nossa alma, que tornaram, enfim, nossa vida melhor e mais rica. É bem provável que Obama não seja esse salvador que Michael Stipe e seus amigos pensam que é, e é possível que ele acabe fazendo coisas piores do que o seu antecessor fez. No fim, nada disso vai importar. No fim, mesmo que os manda-chuvas de Washington estraguem tudo e façam o mundo inteiro odiá-los, ainda restará o R.E.M e tudo o que ele representa. No fim, Obama e seus seguidores é que teriam de saudar o R.E.M: é por causa de gente como eles, e não dos sorrisos do candidato democrata, que algumas pessoas ainda respeitam os EUA.

*Redneck (pescoco-vermelho), termo para caracterizar o descendente de colonizadores britânicos do sul dos EUA, cuja pele branquela avermelhada diante do sul subtropical da região. Acabou como sinônimo de “caipira” para todos os americanos.

Leia também: R.E.M em Porto Alegre

Publicado por Celso Augusto Uequed Pitol | | |

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