domingo, 2 de novembro de 2008

Patrulha racial

A servidora pública Rosane Brandão poderia imaginar qualquer coisa em sua vida, menos que, um dia, seria acusada de racismo. Afinal de contas, casada com um negro, milita em movimentos sociais e, além disso, defende uma das bandeiras mais recentes dos movimentos afro-brasileiros: as cotas para negros nas universidades públicas. Seria mais ou menos o mesmo que acusar um sobrevivente do Holocausto de anti-semitismo ou um líder GLS de homofobia. Pois foi exatamente isso o que aconteceu a Rosane. Dito assim, pode parecer uma situação kafkiana, mas não é bem assim. N´O Processo de Kafka, o acusado nunca sabe os motivos pelos quais ele é um criminoso. No caso de Rosane, ela sabe, sim, a razão da acusação – e é justamente aí que reside o problema.

Na última edição do jornal da Associação dos Servidores da Universidade Federal de Pelotas, Rosana publicou um artigo intitulado “A nova tendência da moda para os últimos anos”, onde a autora fala da maneira como a classe média brasileira estaria tratando as pessoas que ascenderam socialmente nos ultimos anos. Lá pelas tantas a autora diz o seguinte:”Inventaram agora que os negros fazem parte da sociedade. Esse povo que nunca se esforça o suficiente! Claro, sei que eles têm direitos desde a abolição. Mas a gente sabe que eles ficavam lá, na marginalidade, que sempre foi o lugar deles. Sempre tão conformadinhos! Volta e meia aparecia um para gritar por uma justiça qualquer.” E o tom segue o mesmo até o fim do artigo.

Se alguém me desse esse texto para ler e acrescentasse, logo depois, que eu não precisava levar a sério o que estava escrito porque era apenas uma ironia eu sentiria ganas de encher a cara do sujeito de tapas para deixar de ser besta e não me chamar de burro. Não é preciso ser um Swift para saber que se trata de uma maneira de satirizar o que considera como pensamento preconceituoso de parte da classe média brasileira assustada com a presença dos negros nas universidades após as cotas. Pessoalmente, discordo desse ponto de vista: as pessoas são contra as cotas não por serem racistas, mas porque querem oportunidades iguais. Mas a questão não é essa. O que chama a atenção é que Rosana foi acusada de racismo por escrever , de maneira irônica, um texto marcadamente anti-racista.

E o pior não é isso. Sabendo da queixa registrada, Rosane reuniu-se com dirigentes do movimento negro para explicar o óbvio. Não adiantou nada. Ela fez os esclarecimentos necessários e nós entendemos, mas o que fica é um texto publicado com notória escrita racista, por isso deixaremos a ação seguir seu caminho. Este episódio deve servir de lição para as pessoas lembrarem que ao escrever sobre os outros e suas marcas é preciso fazer isso com responsabilidade , disse Maritza Freitas, coordenadora do Movimento Negro de Pelotas, à Zero Hora de ontem. Em outras palavras, Rosane foi escolhida para mostrar ao mundo que qualquer coisa que seja escrita, com qualquer intenção, está sujeita a ser chamada de racista ou preconceituos se alguém, de algum movimento étnico, assim o decidir. Inclusive este mesmo texto que agora escrevemos. Para ser chamado de racista, basta que o cidadão escreva algo que a sra. Maritza não seja capaz de compreender.

Tal atitude denuncia duas coisas. Primeiro, a triste miséria intelectual de uma época em que a ironia precisa ser explicada e,mesmo depois de explicada, ainda é proibida. Segundo, a miséria moral de pessoas que jogam asquerosamente com a honra de alguém de acordo com as conveniências de momento, tomando-a como “exemplo” mesmo depois de reconhecer que suas intenções eram as melhores para a causa que defende. Vivêssemos em um país normal, a atitude da senhora Maritza Freitas e do movimento que representa seria motivo para vergonha da comunidade afro-descendente. Como estamos numa terra firmemente disposta a copiar integralmente todos os defeitos do american way of life (e nenhuma de suas inúmeras qualidades), sua atitude passará para a História como um momento grandioso de luta contra o racismo. Nem os defensores dos direitos dos negros, como Rosane, serão poupados. O fogo amigo da patrulha racial respingou nela desta vez. Se ela foi atingida por ser aliada, não quero nem imaginar o que sobra para quem não é da turma ou não segue a cartilha.

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