quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O país esquecido


portugal-8Monumento aos descobrimentos, Lisboa

A primeira vez que falei com um português teve em mim um impacto semelhante ao que os nossos colonizadores devem ter sentido quando tomaram contato com os nossos nativos. Tinha 19 anos (hoje tenho 25) e era usuário ocasional das salas de chat do portal Terra, divididas por regiões do Brasil e do mundo e por preferências pessoais. Costumava entrar nas ligadas aos meus interesses pessoais – sobretudo na de Literatura – e na da minha cidade natal, Porto Alegre. Um belo dia, resolvi vasculhar os outros cantinhos do mundinho virtual criado pelo portal mais acessado do Brasil. Encontrei um sala para jogadores de RPGs, uma para sambistas, uma para metaleiros e uma chamada “Portugueses”. Não uma: duas salas. Achei interessante e estranho ao mesmo tempo e não pude deixar de sentir curiosidade pelo tipo de povo que lá habitava. Quem seriam estes tais “portugueses”? E numa página brasileira, ainda por cima? O que faziam ali? Entrei para conferir.

A sala contava com uns vinte membros, alguns com uns apelidos que me soaram bastante engraçados. Engatei conversa com um deles. Como de praxe, comecei com uma apresentação básica: sou o Celso e sou de Porto Alegre. E achei importante acrescentar: fica no Brasil. Afinal, minha experiência com estrangeiros na Net me dera a clara noção de que ninguém sabia o que era Porto Alegre, nem que ficava no Brasil e, muitas vezes, nem que o próprio Brasil existia. Importante, portanto, dizer que eu era brasileiro e que Porto Alegre fica no Brasil.

A isto o portuga respondeu:

- Sim, eu sei que Porto Alegre fica no Brasil.

E acrescentou:

- A Adriana Calcanhoto nasceu aí, não é?

Surpreso com a resposta, disse que sim, ela nasceu aqui, assim como outra cantora brasileira, Elis Regina. Dei outras referências da cidade, falei da dupla Gre-Nal, do chimarrão e das bombachas. Tudo isto o lusitano conhecia e eu tinha a nítida impressão de que estava rindo por dentro, pensando em alguma coisa como “que brasuca burro”. Não estaria longe da verdade, mas a forte impressão que me causou a conversa, e que me acompanhou desde então, não se deu pela minha ausência de neurônios.

Aquela pequena conversa – e tantas outras que eu tive com os habitantes da Ocidental Praia Lusitana nos anos subsequentes, fazendo inclusive bons amigos virtuais, foi um simulacro do caráter oratório das relações Brasil – Portugal. Oratório pelo seguinte: trata-se de um lado que só fala, e o outro que só escuta. Quem fala somos nós, com direito a microfone e potentes caixas de som. Quem escuta são eles e, quando tentam falar, não encontram platéia interessada em ouvi-los.

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Cidade do Porto

Eu próprio era um dos que não estava disposto a ouvi-los. Aquele sotaque que me parecia tão estranho, tão diferente das outras línguas românicas, desde que eu me conheço por gente associado a piadas e gozações, nunca me havia despertado o menor interesse. Sabia que Portugal existia (e no Brasil há quem disto não saiba) e que falavam o nosso idioma de um jeito um tanto engraçado. Tinha o necessário discernimento para saber que as piadas de portugueses eram apenas piadas e sabia que eles eram mais morenos que os alemães e franceses e um pouco mais pobres do que eles, conhecimento adquirido em aulas de geografia mal assimiladas. Sabia também que era a terra de um cidadão chamado Camões cujas estrofes eu precisava decorar para o exame vestibular. Ah, claro, e de Fernando Pessoa – mas quando eu lia a “Ode Marítima” ou “O Guardador de Rebanhos” a última coisa que eu pensava era em Portugal. Fiquei por aí. Estava muito ocupado ouvindo rock inglês, lendo James Joyce, Kafka, Machado de Assis e Cervantes e assistindo Werner Herzog e Charles Chaplin e para me preocupar com os portugueses. E creio que não era o único, já que nunca Portugal sequer entrou em pauta em minhas conversas, seja com amigos, seja com familiares – a não ser, é claro, nas piadas. Nisto eu era exatamente igual a quase todos os brasileiros. Ignorava olimpicamente o passado e o presente do país que nos colonizou.

É óbvio que alguém numa situação tal de ignorância nem sequer desconfia em que ponto do tempo e do espaço ele está parado. Não desconfia, portanto, de quão estranha e anômala é a sua situação perante os seus pares. É o caso do Brasil: ele, o brasileiro, nem se dá conta, mas é a única ex-colônia que ignora quase que completamente a ex-metrópole. Fenômenos como o de um grupo de crianças negras haitianas estudando os clássicos franceses como se fossem herdeiros de uma tradição cultural nos parecem uma brincadeira de péssimo gosto, até porque o velho e surrado discurso anticolonialista vive adormecido na ponta da nossa língua. Do mesmo modo, fenômenos norte-americanos como o amor pelo rock inglês, Charlie Chaplin, Alfred Hitchcock e a devoção por Shakespeare e Milton não têm correspondente por aqui. Até mesmo os nossos países vizinhos jamais esquecem da presença inspiradora de um Ortega y Gasset, um Unamuno, um Camilo José Cela, vários e bons músicos espanhóis, um Goya e a figura sempre magna de Cervantes. Jovens argentinos e mexicanos escutam Joaquin Sabina e Estopa, fazem fila para assistir o último de Almodóvar (e de outros espanhóis menos óbvios) e lêem quadrinhos feitos na Espanha. Aliás, nós também fazemos fila diante dos filmes de Almodóvar, empurramos quem está na nossa frente para ver quadros de Picasso e não hesitamos em gastar 50 reais para comprar um livro como “A Sombra do Vento”, do espanhol Carlos Ruiz Zafon. Mas não fazemos – nunca fizemos – o mesmo com um cineasta, um desenhista, um artista ou um escritor português, sendo que a única exceção, José Saramago, constituiu-se em exceção depois do Nobel de 1998 e de uma agressiva estratégia de vendas fruto do projeto pessoal do próprio Saramago em fazer-se conhecido no Brasil.

O outro lado da moeda é bem diferente. Sem que seja necessária uma missão artística ou estratégia de divulgação, as listas de discos mais vendidos em Portugal sempre trazem um brasileiro. As audiências das novelas da Globo continuam altas, o Brasil é um grande destino turístico dos portugueses, filmes como “Carandiru”, “Tropa de Elite”, “Cidade de Deus” e outros chegaram ao circuito comercial (aliás, Fernando Meirelles é o responsável pela única adaptação para o cinema de uma obra de Saramago) e até mesmo autores popularescos como um Paulo Coelho têm grande público por lá, a par de um Machado de Assis, um Carlos Drummond de Andrade, um Guimarães Rosa ou um Érico Veríssimo entre as camadas mais cultas da população portuguesa. Quem duvida que acesse a seção de cultura dos jornais portugueses na Internet.

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Mosteiro dos Jerônimos

É possível que eu esteja exagerando e que um americano do Meio-Oeste, gordo, de cabelos loiros, nem saiba qual é a capital da Inglaterra ou que um índio boliviano sequer saiba falar castelhano. Talvez. Mas com absoluta certeza um professor universitário americano ou boliviano não deixam nunca de conhecer e respeitar a cultura do país que gerou o seu idioma. Salvo pontuais observações sarcásticas de um Borges e seus companheiros de geração com relação à cultura espanhola (sendo que ele, Borges, sempre se considerou Unamuno e Cervantes como mestres), os hispano-americanos nunca deixaram de ter Madrid como o meridiano cultural da língua espanhola, fato claramente comprovável pela força decisória da Real Academia quando o assunto é idioma e o prestígio do Prêmio Cervantes entre os hispanohablantes. Gostando ou não dos espanhóis, os nossos países vizinhos não deixam de resguardar a cultura de língua espanhola e de se sentirem, de um modo ou de outro, descendentes de uma tradição e continuadores dela.

No Brasil, como sabemos, o povo ignora tudo sobre Portugal e reduz o país a material para anedotas vendidas em bancas de jornal. Isto em si, em se tratando do povo, nem seria grave. A questão é que os próprios intelectuais brasileiros não fazem nada muito diferente disto. A releitura brasileira da cultura portuguesa com muita frequência é feita em tom francamente pessimista, quando não jocoso e desrespeitoso e às vezes até condescendente. É a célebre passagem de Antonio Candido em “A Formação da Literatura Brasileira”, quando trata a literatura (e a cultura) portuguesa como “um arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”; é o tom presente em Sérgio Buarque de Holanda, que coloca os ibéricos (e, principalmente, os portugueses) como insensíveis ao trabalho, à organização geral, à educação, à cultura e ao planejamento, deixando margem para o velho lugar-comum de que “teria sido melhor se fossem os ingleses”; é a declaração apocalíptica de Carlos Drummond de Andrade que Portugal foi um país que deu Camões ao mundo e morreu. É isso tudo e muito mais. Uma coisa é um bando de malucos complexados clamando contra o ex-colonizador. A outra são análises feitas por pessoas supostamente qualificadas e imbuídas de rigor científico. Uma coisa é o grito de meia dúzia de pseudo-intelectuais e ignorantes assumidos. A outra é a elite cultural, responsável direta pelos destinos da nação, dizer que a cultura da qual a sua provém pouco acrescentou ao mundo e lamentar o legado que recebemos. Tendo estudado fenômeno semelhante na Argentina não encontrei nada de parecido com isto – e não creio que os EUA, tributários de uma das tradições literárias mais ricas do Ocidente, tenham tomado posição semelhante. Nossa posição é única.

Novamente, o outro lado da moeda chega a ser constrangedoramente distinto. Nem é preciso recorrer às visões amorosas e quase idílicas de um Agostinho da Silva, que considerava o Brasil melhor do que Portugal em todos os sentidos, de um Jaime Cortesão, que achava que servir ao Brasil uma das melhores formas de ser português, e até mesmo do ditador António de Oliveira Salazar, que impedia os seus cidadãos de tomar Coca-Cola mas nunca os impediu de ouvir Roberto Carlos e a Jovem Guarda. Basta esta citação retirada de um pequeno livro didático de história portuguesa, datado do século XIX, para termos em mente o que era ensinado aos pequenos portugueses sobre a ex-colônia.

“Hoje, o Brasil, vastíssimo império, vivido, esperançoso e livre. Emancipado da metrópole não só pelos sucessos políticos que se realizaram no primeiro quartel do século em que vivemos, mas ainda pela lógica natural do progresso das sociedades, está destinado pela sua posição geográfica, pela excelência do clima, pelas riquezas que possui e pelo patriotismo dos seus habitantes, a desempenhar um grande papel na história do novo mundo. Possa o povo infante, filho e em tudo descendente d’uma nação pequena, mas nobilíssima, viver e prosperar por muitos séculos, dando exemplos de sabedoria e de humanidade às velhas monarquias da Europa, que se julgam mais civilizadas, e que só têm mais poder ou fortuna. (Moreira & Correa, s/d, p. 38)”

Em outras palavras, os portugueses eram ensinados a nada menos do que amar o Brasil e até mesmo defendê-lo ante o ataque das demais nações européias que “se julgam mais civilizadas e que só têm mais poder ou fortuna”. Deveriam agir como um pai a defender o filhão das críticas dos professores nos conselhos de classe, um irmão mais velho que entra na briga contra os meninos da outra rua para evitar que o irmãozinho apanhe. É claro que tudo isto data de mais de século atrás e a ingenuidade, por uma série de razões, já não é a mesma. Mas é surpreendente o fato de que Cristiano Ronaldo, ao desembarcar em Brasília para um amistoso contra a nossa seleção, tenha feito questão de chamar o Brasil de “país irmão” perante toda a imprensa. Não creio que qualquer jogador nosso teria feito o mesmo se fôssemos jogar em Portugal – aliás, é bem provável que, ao desembarcar lá, a maioria deles (ou todos eles) nem pensasse que está numa nação que fala a mesma língua que nós, quanto mais que guarda laços históricos e linguisticos.

Tudo isto é incompreensível para um brasileiro. Isto pode até certo ponto ser explicado pelo fenômeno de etnocentrismo típico dos países de grande população e dimensões, como os EUA, que chama de “World Champion” ao seu campeão nacional de beisebol. Mas não é apenas isso. Quem visita Minas Gerais aprende em detalhes a história do barroco “brasileiro”, construído por brasileiros e criado por nós. E é óbvio que muitos portugueses já se deram conta disto. Chamo a atenção para as palavras do jornalista português Miguel Sousa Tavares, velho conhecedor e admirador do Brasil e da cultura brasileira, que escreveu um artigo sobre a comemoração dos 500 anos do Brasil num tom para nós impensável para quem carrega o fardo de “colonizador”.

Assim começa o seu artigo “Desculpem lá o Cabral:

“Tal como vejo as coisas, há duas atitudes habituais, do lado de cá, e ambas são causa de ilusões: uma, é a tal nostalgia imperial, que talvez seja uma fatalidade de quem algum dia foi Império, e que, na prática, se traduz em alguns desejos tidos como verdades de todos os tempos, tais como a ficção do “país-irmão” ou a presunção de que os brasileiros, só porque falam a mesma língua, hão-de gostar tanto de nós quanto nós gostamos deles; outra, é uma subserviência institucional perante o Brasil, da parte de alguns “abrasileirados oficiosos”

Logo depois diz o seguinte:

A questão próxima – as declarações de Caetano Veloso – é apenas um detalhe, mas o detalhe é elucidativo. Preparava-me eu, entusiasmado, para ir a correr comprar bilhete para o espectáculo de Caetano no Parque das Nações, quando dei comigo a pensar se estaria certo ir a um concerto comemorativo dos 500 anos da descoberta do Brasil, ouvir um brasileiro que afirma que “o que Portugal veio fazer ao Brasil foi sugar, sugar, sugar e matar índios.” Se isto é o que ele pensa que Portugal foi fazer ao Brasil, a pergunta óbvia é o que vem ele fazer a Portugal. E como é que nós nos sentiremos a aplaudi-lo no Parque das Nações? Eu sinto-me mal.” E assim encerra o grande jornalista e escritor da cidade do Porto: “Desculpem lá o Cabral, pá. Até dizem que ele não o fez de propósito…”

Qualquer bom entendedor percebe que o tom empregado pelo sr. Sousa Tavares é qualquer coisa menos típico de um “colonizador”. Não é, talvez, sequer o tom que se espere de um europeu e sem dúvida alguma não é o tom que um espanhol ou um inglês empregaria para comentar alguma impertinencia vinda de suas ex-colônias. É o tom de quem está magoado. É o tom de quem esperava uma coisa e recebeu outra, de quem, como ele mesmo diz, estava prestes a correr para ir comprar o bilhete como uma criança corre atrás dos amigos para jogar futebol e, de repente, dá-se conta de que ninguém quer brincar com ela. É o tom, enfim, do amor não correspondido. E este tom nos constrange. Nos deixa um tanto embaraçados. Nos deixa sem resposta. É como se, passeando numa praça qualquer, um desconhecido se aproximasse e declarasse, na nossa frente, que desde sempre seguiu nossos passos, desde sempre nos amou e agora está magoado porque não lhes demos atenção e a pouca que lhe damos é fria e protocolar. O que responder?

A questão recente do Acordo Ortográfico é fortemente elucidativa. Enquanto os brasileiros estão meio chateados com o fim da trema, os portugueses consideram esta reforma, que alterará 0,5% da grafia brasileira e quase 2% da portuguesa, nada menos do que um atentado à sua independência, uma atitude colonialista e fortemente imbuída de um plano de expansão do Brasil em território português. Nem é preciso dizer o quão engraçado é ver os papéis tradicionais sendo trocados e os portugueses agirem como se fossem uma pequena república sob as garras de um terrível e opressor império, como se fossem uma espécie de Cuba atacada pelo temível gringo ianque. E os gritos portugueses nem chegam até aqui: ninguém está sabendo que eles são contra o acordo e ninguém, ninguém, rigorosamente ninguém, está interessado em modificá-lo por causa deles. Não há nada de altivo, sobranceiro e autoconfiante na atitude dos portugueses, nada do a mi no me importa dos seus vizinhos espanhóis, empregado tanto nas relações diplomáticas quanto na vida cotidiana. Há apenas o sentimento de rejeição, medo, amor não correspondido e ciúme – o sentimento de quem se importa e percebe que o outro lado não se importa.

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É de se notar, aliás, que nos últimos tempos a diplomacia portuguesa tem feito o possível e o impossível para tentar fazer o velho Portugal parecer um país moderno, cool e chique para os brasileiros. Em todas as entrevistas, os embaixadores portugueses dizem que não é mais possivel que os brasileiros continuem a ver os portugueses como o seu Manuel e a dona Maria e Portugal como o país do bacalhau, das padarias, de Nossa Senhora de Fátima e de prédios antigos prestes a desabar. Não creio que tenham conseguido grande coisa. Continuamos a prestar mais atenção em Joyce e Ian Curtis do que nos seus correspondentes lusitanos. Após constatar tudo isso, um professor português chegou a sugerir a estapafúrdia idéia de que a imigração brasileira para Portugal deveria ser facilitada a fim de que o país se tornasse mais interessante aos olhos da maior parte da população, como os EUA, por exemplo. Ora, é um claro indicativo de que os portugueses já não sabem mais o que fazer para conquistarem a nossa simpatia ou a nossa atenção. E já não sabem por que não têm a menor idéia de como conquistarem a nossa simpatia e a nossa atenção. Apesar de todas as novelas, de toda a música, de todos os livros, de todo o futebol, de tudo o que leva, enfim, a marca Brasil em Portugal ser amplamente conhecido do mais ignaro dos lusitanos, o fato é que eles, com tudo isso em mãos, não sabem o que falar e como falar com os brasileiros. A idéia que fazem do que é o Brasil, com toda a informação que têm a respeito de nós, simplesmente não bate com o que nós pensamos a respeito de nós mesmos. E talvez seja difícil para um português imaginar que, depois de quase duzentos anos de afastamento e de migrações de gente de todo o mundo (incluindo aí a construção de cidades à imagem e semelhança de suas terras natais), da Alemanha ao Japão, do Líbano à Itália, da Espanha à Coréia, da Rússia à Grã-Bretanha, o seu povo se tenha transformado em apenas um dos constituintes da nação brasileira, um entre muitos, sem distinção, sem especial carinho ou reconhecimento. Sem nenhum sentimento de irmandade. Um Manoel ou um Joaquim entre milhões de Fritzes, Helmuts, Giuseppes, Jacobs, Mohammeds, Farids, Johns, Josephs, Pablos, Fiodors, Leons e outros tantos que o Velho Mundo expulsou e a doce terra brasileira recebeu, deu comida, abrigo e amizade. A um português amante do Brasil – o que é quase uma espécie de pleonasmo – talvez seja um pouco decepcionante descobrir que para cada Ouro Preto há uma Blumenau, uma Garibaldi, uma Nova Friburgo, uma Monte Verde, uma Nova Veneza…..

Não conheço ninguém que tenha tratado essa questão melhor do que o ensaísta português Eduardo Lourenço em “A Nau de Ícaro”. No seu ensaio elucidativamente intitulado “Nós e o Brasil – ressentimento e delírio”, Lourenço admite que “O discurso português sobre o Brasil, tal como uma longa tradição retórica e historiográfica recita e reescreve sem cessar, é uma pura alucinação nossa, que o Brasil – pelo menos desde há um século – nem ouve nem entende” e que “A autonegação ou denegação que a cultura brasileira faz de si mesma, ocultando, menosprezando ou, com mais verdade hoje, ignorando o seu nódulo irredutível e indissolúvel português (que, mais do que língua, quer ser memória, cultura, rito e ritual) é tão absurda e delirante como a fixação possessiva, o amor imaginário, que devotamos a um Brasil não por ser o que ele é, e o merecer naquilo que ele é, mas por julgarmos que os brasileiros se viem como continuação, ampliação e metamorfose nossa”.

Logo reconhece o óbvio, não sem alguma dureza:

“Que relação pode existir entre o imaginário de um povo de 10 milhões de habitantes, como Portugal, prisioneiro de mitos obsoletos – o Brasil é um deles – e o de um país de 150 milhões de almas, entre as quais se contam pessoas vindas da Itália, Espanha, Alemanha, Europa Central, Oriente Médio, Rússia ou Japão?”

Também duramente ele admite que:

“Sem intuito de escandalizar, os portugueses devem saber, perceber e até compreender que nós não somos um problema para o Brasil. Ou só o somos, negativamente, quando em momento de profundo ressentimento de imaginários pais mal-amados ou ignorados, cedemos à tentação de nos enervar com a desatenção brasileira a nosso respeito”.

Mais dura ainda é esta passagem:

“Os brasileiros nunca nos perdoarão o não terem tido um pai para matar, ou um pai digno de ser morto, como aconteceu com os colonos da Virginia para com a Inglaterra , com os indios do padre Hidalgo, ou com os soldados de San Martin e de Bolivar para com a Espanha (….) A infelicidade dos portugueses reside no fato de não poderem esquecer esse momento em que, tendo abandonado o porto de origem, se tornaram por força das circunstâncias, pequenos demais para os seu sonhos”.

Por fim, Lourenço deixa um recado aos portugueses:

“Para o nosso mútuo presente o que seria urgente era rever, de cabo a rabo, toda essa teia imaginária, hipócrita e nula nos seus efeitos que se acoberta sob o rótulo de relações culturais entre Portugal e o Brasil (…) Quanto a nós, o que nos cabe é estruturar, reforçar, conhecer cada vez melhor a nossa imagem, a maneira como somos vistos e percebidos, os limites do que somos e podemos esperar de nós mesmos e dos outros, em suma, autonomizarmo-nos como realidade história e anímica, para escapar com sucesso à galáxia familiar de um ressentimento e de um delírio identicamente indignos de um povo que é gente, história e sociedade organizada há oito séculos (…)”.

É claro que não falta no discurso do sr. Lourenço o mesmo ressentimento que ele tanto deplora em muitos de seus compatriotas. Nota-se claramente o mesmo desapontamento de Miguel Sousa Tavares e de todos os portugueses que confrontam esta mesma realidade, seja pessoalmente, em viagens ao Brasil (cada vez mais frequentes) seja através da Internet, a cada vez que colocam “Portugal” num motor de busca e se deparam não com um poema de Camões mas com uma infame piada ou o seu modo de ser, a sua cultura e a sua História como objeto de chacotas. De qualquer forma, é bom lembrar que estes textos foram publicados nos anos 90 e não creio que possam sofrer qualquer reparo. Nem mesmo a emigração desqualificada de brasileiros para Portugal – o que sempre mancha a imagem dos países – arrefeceu o estado de ânimo português para conosco: até nosso maior festival de rock foi comprado por eles, seus jovens falam “treta”, “ô meu”, “bacana”, “veado” e outras gírias nossas e na seleção portuguesa de futebol não faltam brasileiros, incluindo aí ídolos nacionais, tidos, havidos e tratados como autênticos compatriotas. Não serão essas contingências de ordem econômica que irão matar os mitos e os símbolos enraizados em uma cultura tão fortemente simbólica como é a portuguesa. Esquecer estas coisas não é algo próprio deles, mas sim de nós. Desconfio, porém, que o tempo – que, como Borges disse, também é esquecimento – nos mostrará que este apagamento progressivo da marca portuguesa no nosso imaginário será o maior e o mais grave de todos os nossos esquecimentos.

Escrito por Celso Augusto Uequed Pitol |

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