quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O nosso patriarca e o deles

Os EUA são uma nação de múltiplas faces. Ao contrário do que sua imagem estereotipada pode passar, os americanos guardam diferenças internas absurdamente grandes e até antagônicas, seja no aspecto cultural seja no econômico ou no político, onde convivem – também ao contrário do que normalmente se diz – desde os esquerdistas mais ferrenhos até os conservadores. Desta disputa eterna entre pontos de vista antagônicos não escapam nem os grandes mitos da História americana, como John Kennedy, Ronald Reagan, Franklin Roosevelt e Abraham Lincoln, fustigados por ataques periódicos e sujeitos a altos e baixos. conforme as tendências dominantes Neste país tão variado, há, entretanto, uma unanimidade, – alguém, porém, que todo americano, de direita ou de esquerda, liberal ou conservador, cristão ou agnóstico, negro ou branco, admire sinceramente e pelas mais diversas razões: a figura de Thomas Jefferson. É o mais proeminente dos Founding Fathers americanos, o maior presidente que o país já teve, grande humanista do século XVIII, mestre inspirador da democracia americana e dos regimes democráticos que os americanos incentivam mundo afora e, acima de tudo isso, um exemplo de ser humano para todos os seus compatriotas. Os esquerdistas o lêem como um precursor da social-democracia, preocupado que era com a distribuição equitativa de renda e com o fim das classes sociais. Os direitistas vêm nele um conservador que guiava sua vida por valores atemporais e até religiosos. Até anarquistas encontram subsídios nos textos de Jefferson, que versam sobre temas tão díspares quanto botânica e filosofia política, fruto da sua conhecida vastidão de interesses. O jornalista I.F. Stone, socialista convicto, dizia que inspirava-se mais em Jefferson do que em Karl Marx. Quando John Kennedy recebeu uma comissão de quarenta e nove vencedores do PrêmIo Nobel na Casa Branca, quis fazer um elogio aos visitantes e declarou que aquela era a maior reunião de talento e conhecimento que já se havia reunido na Casa Branca – exceto quando Thomas Jefferson jantava ali sozinho.

A reverência parece exagerada, mas é bem justa. Os EUA devem mesmo muito a Jefferson. A idéia de república federada, absolutamente inovadora para a época, é criação sua. A noção do “American exceptionalism” – a de que os Estados Unidos são um país diferenciado dos outros – também é dele. Seu horror à sociedade dividida por classes, típica da Europa de então, gerou um senso de igualitarismo feroz até hoje entranhado nas profundezas da sociedade americana que muitos visitantes europeus confundiam – e ainda confundem – com plebeísmo mediocrizante. Por outro lado, defendeu ardorosamente os princípios da liberdade individual e da livre-associação, duas das maiores marcas dos EUA desde sempre, como forma de equilibrar a balança e impedir que a democracia americana degenerasse em demagogia, como previu Aristóteles. Por tudo isso, Thomas Jefferson não é somente um grande personagem histórico como é absolutamente atual. Quando alguém resolve defender a liberação das armas de fogo imediatamente lembra que ele era a defendia. Quando um grupo nazista resolve fazer uma manifestação nas ruas de Washington, o advogado lembra do que ele disse a respeito da liberdade de opinião. Invocar seu nome numa discussão é um poderoso argumento de autoridade, algo como um católico citar Tomás de Aquino ou um comunista citar Marx num discussão entre pares – e os pares são, neste caso, todos os americanos.

A tudo isto nós, brasileiros, olhamos com aquele velha mistura de admiração e inveja que nos acomete quando comparamos o Brasil aos EUA. Nos é inevitável a comparação: é um país gigantesco, multiétnico, culturalmente variado, cheio de recursos naturais e, acima de tudo, jovem, vigoroso e contente consigo mesmo, como nós gostaríamos que o nosso fosse. Quando assistimos aos filmes que se passam na Califórnia, no Alabama, na Lousianna, no Tenessee, no Texas ou na Flórida vemos cenas que poderiam perfeitamente ser filmadas aqui. As ruas, porém, são mais limpas, os carros parecem mais novos, e sempre que algum nome ligado à fundação da república americana é citado faz-se um silêncio de respeito. Essa reverência pelos nossos maiores antepassados não existe. Não lemos o que os grandes brasileiros do passado escreveram, não imitamos suas atitudes, não tomamos suas palavras em consideração. Deve ser por isso que um homem como José Bonifácio de Andrada e Silva seja ainda um desconhecido para muitos brasileiros, mesmo cultos.

Ou nem tanto. Com certeza há ruas em várias cidades homenageando ao Patriarca da Independência e muitos sabem da importância de sua figura para a História do Brasil. Nada além disso. Se José Bonifácio, fosse lido por aqui, poderiamos, seguindo a nossa tradição de compararar-nos com os EUA, chamá-lo deo nosso Thomas Jefferson. Não creio que suas obras completas tenham sido publicadas alguma vez no Brasil. Se foram, caíram em esquecimento. Pode-se dizer, sem medo de errar, que José Bonifácio não representou praticamente nada para a formação do pensamento político brasileiro.

Alguém dirá: e daí? O que nos valeria a leitura das obras de um provável pseudo-pensador bacharelesco do Brasil antigo, bom em retórica e péssimo em filosofia? Sim, pois os pares de José Bonifácio eram pouco mais do que isso – quando não eram exatamente isso – e foram, com toda a justiça, esquecidos até mesmo das melhores enciclopédias. A questão é que José Bonifácio não era um deles. Além de cientista brilhante – era membro da Academia de Ciências de Coimbra e publicou trabalhos sobre botânica e geologia- foi um escritor prolífico de tratados e ensaios, sobra temas que, vistos hoje, causam espanto pela sua atualidade. José Bonifácio foi quase contemporâneo de Thomas Jefferson, mas não há mostras claras de que se tenha inspirado nele para alguma coisa. Não poderia esperar, talvez, que os braisleiros acabariam por tomar Jefferson como modelo – e modelo naquilo que Bonifácio tinha muito mais a mostrar.

Difícil de acreditar? Vejamos, então. No seu ensaio “A Escravidão e a Formação Nacional”, José Bonifácio diz o seguinte:

“É preciso que cessem de uma vez os roubos, incendios e guerra que fomentamos entre os selvagens da Africa. É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão dos nossos navios”

Até aqui, Bonifácio é louvável como defensor dos direitos do homem num país escravocrata. Um homem corajoso e valoroso, como tantos outros em sua época. Porém, é no trecho a seguir que encontramos um Bonifácio que vai além disso – um visionário destacado de seu tempo e precursor de idéias que, no Brasil, só seriam admitidas na década de 30 do século XX:

“é tempo que vamos acabando até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes… cuidemos, pois, desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e sem amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto”

Em outras palavras, temos aí nada menos do que um defensor da mestiçagem racial, numa época em que raça era um fator importante de diferenciação em todo o mundo. O negro, no Brasil, devia amalgamar-se ao branco, para produzir uma etnia nova, diferente e tipicamente brasileira. Como bom cientista que era, José Bonifácio decerto sabia que a mestiçagem, ao contrário do que pensava a maioria dos pensadores europeus de sua época, não era degenerativa. Aliás, como brasileiro vivendo em Portugal, sabia que a própria ex-metrópole (que ele admirava, respeitava e considerava para sempre amiga do Brasil) tinha uma população fortemente miscigenada com negros escravos e mouros, estes trazidos pelos árabes e os outros pelos grandes latifundiários do Sul do país. Não era, portanto, nada de tão novo na história da humanidade.

O anglo-saxão Jefferson provavelmente não tinha notícia disto e tratou o problema da escravidão negra em seu país desta forma:

As duas raças – brancos e negros – ….. não podem viver sobre o mesm governo. Natureza, hábitos, opiniões criaram uma línha indelével de distinção entre elas”.

De acordo com o historiador Stephen Ambrose: “Jefferson, como todos os donos de escravo e outros momentos da sociedade americana branca, via os negros como inferiores, infantis, pouco confiáveis e, é claro, como propriedade. Jefferson, um gênio da política, não conseguiu ver maneira dos negros amricanos viveram em sociedade como homens livres.” A solução que ele apresentava era expulsa-los do país, como os espanhóis fizeram aos mouros.

Não ficou nisso o grande patriarca americano:

“O amalgamento entre brancos e negros produz uma degradação na qual nenhum amante do seu país e nem amante da excelência do caráter humano pode consentir inocentemente.”

Assim falou o mestre Jefferson e assim procederam seus diletos e esforçados alunos. De suas palavras saiu uma sociedade dividida, com um violento apartheid social baseado em raça que o mundo dito civilizado nada fez para minorar, onde até a década de 60 um negro não podia dividir um banco de ônibus de um branco e nem entrar nas universidades do Estado. Das palavras de José Bonifácio saiu um país miscigenado, onde a discriminação, após o fim da escravidão, jamais foi amparada por lei alguma e enfrentou forte oposição política e social.

Neste momento, em que notícias como essa são veiculadas e surgem a partir da importação malfeita de idéias e sentimentos alienígenas à formação cultural brasileira, é de se perguntar se não falta no peito daqueles mais afeitos à “defesa do interesse nacional” quando o assunto é economia um pouco mais de sentimento de brasilidade quando se toca em assuntos que não estão sujeitos às oscilações da Bovespa. A contínua separação entre negros e brancos por muros institucionais, levada a cabo sem pudor e sem reservas pelo atual governo, é um erro de que os americanos se ressentem e até mesmo George W. Bush, que, como bom americano (e republicano, ainda por cima), é devoto de Jefferson, já declarou que essas coisas não funcionaram e que o melhor é abandoná-las. Não teve coragem de contrariar o grande mestre em público. Nós fazemos o mesmo, só que com o mestre deles: o nosso mestre nós contrariamos sem problema nenhum.

Publicado por Celso Augusto Uequed Pitol

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